O que devo aprender com isso?


Quem nunca se perguntou por que diabos coisas ruins acontecem com a gente? Quem nunca se sentiu injustiçado ou vítima de alguém? Certa vez, comecei a pensar sobre isso. Afinal, “porque sim” não seria uma boa resposta.

Joana é uma moça muito inteligente e bonita. Estudiosa, tem um emprego estável e bem remunerado, é independente e carismática. Um dia, cruzou o caminho de Joana, um rapaz absurdamente atraente. Portou-se como um gentleman: levou-a às alturas, fez da moça a pessoa mais desejada e amada que poderia existir na Terra. Ela sentiu-se preenchida em todos os seus  espaços mínimos, seus dias eram ultra coloridos, todos os sons à sua volta reverberavam em sintonia. Afirmava para si mesma que desconhecia a felicidade, até então. Passados alguns meses, Joana percebe que aquele moço tão galanteador já não a encantava mais. O rapaz, algumas vezes, a decepcionou. Depois, a fez chorar. Mais adiante, aquele homem tão ilustre a ignorou diante de amigos, fazendo com que ela se sentisse um nada. No fim das contas, Joana caiu em depressão e pensava em se matar. Perdeu toda razão de sua existência, não tinha mais alegria em sua vida. Pobre Joana. Tão bonita, tão inteligente e lúcida. Por que coisas assim se sucederam com ela? Quem acompanhou sua história percebeu o quanto ela foi injustiçada, não merecia tamanha desgraça. Joana estava diante de duas opções: ou ela passaria a ser eternamente vítima de seus relacionamentos, culpando todos os homens por todas as suas infelicidades; ou Joana olharia profundamente para dentro de si e se perguntaria “o que tenho que aprender sobre isso?”.

Carlos é um rapaz muito amigo e fiel às suas amizades. Batalha incessantemente pela vida, não fica parado e não se intimida por pouca coisa. Em seu trabalho, Carlos possui um grande parceiro de todas as horas, Tiago. Conhecem suas respectivas famílias, comemoram aniversários juntos, dividem confidências sobre seus relacionamentos, numa amizade que não se vê nos dias atuais. Obviamente, eles possuem diferenças: Carlos está terminando a faculdade de engenharia e Tiago já é formado em administração. Porém, no ambiente de trabalho, esses detalhes passam despercebidos, tamanha a sintonia dos amigões. De repente, surge na empresa a possibilidade de uma promoção. Se Tiago fosse promovido, não haveria mudanças significativas em seu salário ou função. Ele somente teria uma posição de liderança mais destacada. Carlos pensava em mudar de emprego, estava participando processos seletivos em outras empresas, com melhores ganhos e condições de trabalho. Certamente uma promoção na empresa lhe cairia bem, naquele momento. Porém, Carlos estava tranquilo caso não conseguisse a vaga, pois, mesmo diante das vantagens e das possibilidades viabilizadas por outras empresas, o rapaz não gostaria de se ver em competição direta com seu amigo, Tiago. Ele muito considerava seu amigo-irmão e todos os instantes vividos.

Certa manhã, em uma reunião de equipe, o chefe anuncia para todos presentes que Tiago havia sido promovido e, a partir daquele momento, era o líder da divisão.  Carlos sentiu-se traído. Sua amizade, tão significativa e importante, foi colocada à prova por Tiago. Carlos nunca lhe desejou mal e o tinha como alguém muito especial. Por que, diante de tantas outras possibilidades de promoções e bons salários, muitas vezes compartilhadas com Tiago, este realizou o processo seletivo para a promoção “às escondidas”? Carlos não merecia tamanha injustiça, pois era uma pessoa honesta e transparente, e encontrava-se diante de duas opções: ou ele romperia a amizade com Tiago, vingando-se no furor de sua raiva; ou em profunda reflexão se perguntaria “o que tenho que aprender com isso?”.

Por fim, Ana é uma criança de aproximadamente quatro anos. Sua mãe, Clara, trabalha nos serviços gerais de um hospital, fazendo diversos turnos, com folga em somente um dia da semana. Com seu salário, Clara sustenta a casa e o companheiro, desempregado. Ela não tem condições de pagar uma creche para Ana e a creche pública mais próxima fica a cinco quilômetros de sua casa. Diariamente, Clara serve o café da manhã, ajeita o almoço e deixa o um lanchinho preparado para Ana. A mulher sai para trabalhar às nove da manhã, retornando às oito da noite, no primeiro turno de trabalho. No segundo, ela sai às três da tarde e retorna à meia-noite. No terceiro, Clara faz plantões, passando algumas noites fora de casa. No primeiro turno do trabalho de Clara, seu companheiro entra no quarto de Ana às dez da manhã. No segundo, ele entra às nove da noite e no terceiro, não é necessário entrar no quando da criança, pois a casa toda está disponível durante a noite.

Certo dia, véspera de feriado, Clara ganha um bônus de horas em seu trabalho. Poderia voltar para casa mais cedo, para ficar perto de sua filha e descansar. Chegando em casa, ela se depara com a casa vazia e a porta do quarto de Ana trancada. Bate algumas vezes, chamando a filha. Do lado de fora, Clara escuta alguns sussurros: “cala a boca! Fica quieta!”. Desesperada, Clara começa a bater insistentemente na porta, pedindo para que abram. Bate com tanta força, que chama a atenção dos vizinhos, que colocam suas cabeças para fora das janelas. A mulher grita: “abre essa porta!”. E após alguns socos e murros, somente se escuta: “saia de cima dela!”. Houve xingamentos, palavrões, ameaças. Ana, atônita, não ria nem chorava. Clara urrava, dizendo que chamaria a polícia. Os vizinhos que estavam em casa naquela tarde ensolarada de verão ouviram tudo. Aliás, eles já sabiam de tudo; pois os gritos da criança nas horas em que a mãe não se encontrava em casa, serviam de denúncia, um pedido mudo de socorro.

No dia seguinte, mais discussões e xingamentos entre Clara e seu companheiro. Naquele mesmo dia, Ana gritou bem alto, a fim de que alguém novamente adentrasse aquela porta e a salvasse. Mas isso não aconteceu.

Seria muita hipocrisia perguntar o que eu e todos aqueles vizinhos, moradores de um bairro popular, temos que aprender com isso. Pior ainda seria perguntar o que a pobre Ana tem a aprender com isso.

Já sabemos que “nada é por acaso” e, muitas vezes, discordamos desse jargão. Mas para melhor compreender as vicissitudes da vida, busquei inserir em minhas reflexões de que “até o mal está a serviço do bem”. Podemos ficar olhando para a metade vazia do copo, lamentando por isso, ou podemos acreditar que há muito espaço naquele copo a ser preenchido.

Passados alguns meses, Joana buscou ajuda médica, psicológica e espiritual. Aproximou-se de amigos que haviam ficado para trás. A moça percebeu que somente ela poderia preencher o espaço vazio de seu copo, com amor próprio. Ela ainda está em um processo de melhora, pois ainda precisa aprender a amar e deixar-se amar. Joana tem se desenvolvido como pessoa, tem encontrado forças de onde ela não fazia ideia que surgiriam, tem se experimentado. Ela começou a encarar a vida com mais alegria e otimismo, menos cobranças e novas descobertas. Mas tudo isso só foi possível porque Joana deixou alguém entrar em sua vida e tomar um espaço que é somente dela. Joana aprendeu e, por isso, é grata.

Carlos parabenizou Tiago pela conquista e lhe desejou sucesso. Ele seguiu buscando novas oportunidades e processos seletivos, pois acredita que existem muitas outras boas empresas por aí. E tem se surpreendido pela quantidade de amigos e pessoas que lhe querem bem, seja lhe auxiliando, encaminhando vagas de emprego ou mesmo para jogar conversa fora em um fim de tarde qualquer. Carlos também percebeu a importância de colocar limites em suas relações, sejam elas quais forem. É importante se preservar, algumas decisões e ações não precisam ser compartilhadas. Ele continua sentindo a mesma admiração, amizade e respeito por Tiago, porém, com parcimônia. O rapaz entende que a busca de crescimento pessoal é individual. Ele é capaz de responsabilizar-se pelas próprias ações e tem consciência de sua postura ética para com os demais. Compreendeu que a atitude de Tiago o advertiu quanto à forma com que se relaciona e confia nas pessoas. Por isso, Carlos é grato.

Infelizmente, a pergunta “o que tenho que aprender com isso”, não é válida para todas as situações. Não se sabe por quanto tempo mais Ana será mantida em cativeiro, indefesa e vítima de uma doença chamada “machismo”. Clara também é vítima dessa doença, que a afeta de outra forma. Não nos cabe tirar lições da violência desmedida e cruel que assola nossa sociedade, rebaixando-a aos piores níveis de perversidade e insanidade mental. Não há nada que Ana possa aprender em sua curta vidinha de criança, com a situação diária em que vive. Ela precisa, sim, de justiça e bem rápido.

Já os vizinhos, que ouviram e sabem de tudo, precisam aprender a agir. Liguei para o Conselho Tutelar responsável pela região, mas sem sucesso. Pediam o nome dos pais ou responsáveis, nome e idade da vítima e endereço. Em mãos, somente tenho horários de gritos muito bem audíveis de uma criança posta para ser devorada diariamente. Os vizinhos, todos, precisam se incomodar com a impunidade e se responsabilizar pela violência com a qual estão congruentes.


Talvez estórias comuns, que todo mundo já ouviu falar um dia, seja um início de desacomodação. Algo para ficar inquieto e, em vez de somente expressar espanto e surpresa diante do inesperado da vida, possamos encará-la e assumir uma postura mais humana, altruísta e ética. Por isso, vale a reflexão: o que tenho que aprender com isso? Até o mal está a serviço do bem.

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