Aconteceu de repente, sem muita explicação. Acordou certo dia com um turbilhão de sentimentos. Passou a semana revoltado com tantas mudanças, sem que tivessem lhe perguntado se estava disposto a aceitá-las. Seus pais estavam diferentes com ele, e percebeu que fizeram algum tipo de acordo com os familiares. Seus amigos de infância, cada vez mais estranhos. Ele começou a se sentir fora de lugar. Haviam poucos espaços ou situações em que se sentia bem ou à vontade com alguém. Começou a se dar conta de que estava sozinho e de que era único. De repente, ele se olhou no espelho e não se reconheceu: seu corpo estava maior, diferente. Suas roupas não eram tão coloridas e divertidas, como antes. Sua voz, seus pensamentos, seu olhar... Tudo não era mais o mesmo.
Deu uma raiva! Ele quis colocar toda aquela braveza para fora, gritar, urrar, grunhir. Teve vontade de sair correndo, fugir. Mas, de quem? Do quê? Não sabia ao certo, estava muito confuso. Queria ficar perto dos amigos, para não se sentir tão estranho, tão perdido. Para continuar fazendo os torneios de games, jogar bola no campinho da praça, falar umas bobagens e perceber que eles também estavam mudando. E tem aquela menina... Que toda vez que a via, seu peito parecia explodir. Não sabia se sentia vergonha da barba rala crescendo, da voz desafinada, ou do cheiro de suor do dia. Tudo parecia estar muito além do que era capaz de suportar. E foi necessário - mais que necessário - um escape para aliviar a tensão.
Seus amigos lhe apresentaram uma banda de rock. Seu pai escutava rock e ele achava que tinha que fazer o mesmo. E todo aquele som de guitarras nervosas, o contra baixo marcando os compassos, intensificando graves, a bateria firmando o ritmo, acelerando a respiração, como se estivesse correndo em alta velocidade. Toda aquela sonoridade, permeada por letras e melodias que esbravejavam seus sentimentos: era a sua música. Tudo ali à postos. Falavam sobre sua raiva, sua revolta e seu jeito único de estar no mundo. E tem aquela letra... Que resume toda sua vida em quatro minutos.
A medida em que novas bandas de rock lhe foram apresentadas, ele ganhava mais voz. Identificava melhor suas emoções. Às vezes, ficava difícil dar nome ao sentimento, mas tinha aquela música que dizia tudo. Para cada momento da vida, uma banda diferente. Para cada ano que passava, um novo CD. E, nessas horas tudo valia, da roda punk ao bom e velho "toca Raul" no churrasco com os amigos, em um domingo qualquer. O importante era sempre escutar o som da guitarra ao máximo volume permitido pela vizinhança.
E tinha aquela menina... Que também passou pelas mesmas transformações que ele. Vez ou outra, se topavam em um show qualquer. Ela também usou cabelos coloridos e roupas largadas. Também pintou os olhos e as unhas de preto, bebeu umas e outras, e desfilava por aí usando uma camiseta surrada dos Ramones. Certo dia, ele escutava um rock'n'blues quando ela veio em seu pensamento. Foi um lampejo tão rápido quanto o mais rápido dos compassos. E permaneceu alguns segundos ali, anestesiado em suas ideias, tentando entender o que se passava. E aquela música, que não saía mais da sua cabeça!
Um dia, eles se aproximaram. Puxaram conversa: "Legal sua camisa dos Strokes!", disse ela. Em resposta, ele quase se afogou no copo de cerveja! E falaram dos sons, da batida da bateria, dos solos, dos gritos ensurdecedores, dos shows. E falaram mais: dos livros, das inspirações, dos filmes, revistas, estórias, comédias e tragédias. Falaram das fantasias, medos, inseguranças, desamores, sonhos, desejos, compositores e autores.
Depois daquele dia, nenhum rock'n'roll foi igual. Nunca mais. Porque aquela bateria estava muito mais suave e o solo da guitarra, naquela música, não parecia mais ser tão agressivo como antes. E, de repente, todas as canções falavam de amor. Não importava o tamanho da dor, todas falavam de amor. Quando menos se esperava, já era possível dominar a raiva, controlando sua intensidade. E ele olhou para os lados e percebeu que não tinha mais volta. Algo muito profundo havia ocorrido, já era tarde. Ele se sentia transformado e gostava disso. Agora, diante do espelho, olhava a si mesmo e se orgulhava do que via.
Certo dia, em casa com sua mãe, ouviu uma canção diferente. Não era o bom e velho rock'n'roll, mas suas letras eram bem parecidas. "O que é isso que está tocando, mãe?", perguntou. "Bossa Nova", veio a resposta. Um repique e a leveza do som o transportou para outro espaço-tempo, no qual nunca estivera antes. Como nunca havia percebido? Foi tudo tão rápido! Estava crescido, já era um homem. Mas, depois daquele dia, teve certeza de que todo rock'n'roll, quando amadurece, vira bossa nova.
Que gostosura teu texto! Curti e senti falta do botão de estrela ou de coração para eu apertar! beijos!
ResponderExcluirOinnn, guria! Obrigada ^^
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