Um ano de COVID-19: chegamos até aqui



agora, que você já fez seu isolamento social
que conheceu artistas anônimos da internet, fez cursos on line, assistiu inúmeras lives e malhou em casa
que já virou rotina chamadas de vídeo com a família, amigos e no trabalho
que entendeu melhor o que é conviver com seu companheiro ou companheira de mais de dez anos
que se deu conta que você deixou de ser o herói de seu filho adolescente faz tempo
que teve que se sentar no chão junto às crianças, para que elas não tivessem overdose de internet
que teve que estar ao lado dos seus filhos na hora da aula on line também (quando teve)
que aprendeu que fazer uma horta em casa, cozinhar e se dedicar aos cuidados domésticos é trabalhoso, mas pode ser bom
que percebeu que home office é estressante com crianças brincando, cachorro latindo, caminhão do gás passando, mas que se adaptou com o tempo
que já aprendeu que reclamar não resolve
que é importante aprender a lidar melhor com a própria solidão e a selecionar com cuidado as amizades
que estar só não é tão ruim assim, desde que você goste da própria companhia
que seus pais são teimosos e desobedientes e que você pode discordar deles
que é importante cuidar da saúde e da cabeça enquanto as coisas ainda estão no lugar, porque depois pode ser tarde
que sua separação on line foi deferida, e que os problemas que você empurrou para baixo do tapete sempre aparecem
que não adianta forçar, não se tem o controle de tudo, não se pode controlar ninguém
agora, depois de um ano de pandemia, você aprendeu que são inevitáveis as consequências das decisões políticas das quais você faz parte, sobre vida de todos
que, de repente, você se pergunta "onde foram parar os artistas anônimos da internet?"
que a vida é frágil, muito frágil...
espero que você tenha parado para pensar sobre isso e um pouco mais
que vivemos coletivamente e que não há nada mais democrático do que a capacidade letal de um vírus microscópico
que dinheiro é importante, sim, mas que a forma com que ele chega nas pessoas está errada; muita gente com pouco, pouca gente com demais
você, que aproveitou o isolamento social para assistir O Poço, Bacurau, Parasita, as séries Dark e Chernobil, buscando uma compreensão crítica política-social
você leu 1984
que se lamentou pela ausência das escolas, compreendendo que ali não é depósito de gente
que a ciência mostra a verdade e este é o motivo pelo qual os políticos não gostam muito dela - ou gostam quando convém
a todos nós que chegamos até aqui, levante a mão quem não deu uma surtadinha sequer no último ano, quem passou imune física, mental e espiritualmente a tudo isso
chegamos até aqui
não é motivo de orgulho, não há que se orgulhar da ganância, mentiras, destruição em massa e genocídio
não existe mérito em atravessar um ano tão caótico e traumático
chegamos até aqui por resistência, porque simplesmente queremos instintivamente viver, pela pulsão da vida que sabemos que vale a pena
chegar até aqui me dá até culpa quando penso nas vidas perdidas, na fome das famílias, na juventude sem perspectivas
não há motivo para festejar, por mais que se tenha motivos para agradecer.

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